No entanto, como recorda Paula Escarameia, "houve muitas ideias e sentimentos que no passado tiveram expressão legislativa e foram quase esquecidos nos nossos dias. O direito à felicidade,
constante das declarações americanas do século XVIII, é um deles".
Estava no Bill of Rights que inspirou a revolução americana, não está no documento penosamente negociado pela viúva do Presidente Roosevelt. É bom recordar este facto, pois é bom ter bem presente que o documento aprovado a 10 de Dezembro de 1948 pelas nascentes Nações Unidas resultou de um compromisso. Mais exactamente de um compromisso realizado no quadro da guerra fria. Em que consistiu tal compromisso? Basicamente no facto de os negociadores ocidentais, em especial os anglo-saxónicos, colocarem a ênfase nos direitos que protegem o cidadão da interferência do Estado na sua liberdade e no dever de considerar que todos os homens nascem livres e iguais, enquanto o bloco comunista fez questão de incluir direitos que implicavam uma intervenção do Estado destinada a proteger determinadas condições sociais e económicas.
O primeiro tipo de direitos, na linhagem dos consagrados na inglesa Magna Carta de 1215 (um documento fundacional, pois limita os poderes do soberano) ou no já citado Bill of Rights de 1789, destinam-se a proteger os cidadãos da interferência dos estados no seu direito à autodeterminação e à liberdade, um conceito com raízes muito antigas mas a que John Locke, um dos expoentes do chamado "iluminismo escocês", havia dado um século antes um sentido preciso ao considerar que todos os homens nascem livres e iguais e isso constitui um direito natural inerente a todos os indivíduos.
Já no século passado dois filósofos emigrados no Reino Unido, Isaiah Berlin e Karl Popper, desenvolveriam a ideia de que esta noção de liberdade era "negativa", pois implicava a renúncia dos estados e interferirem nas escolhas dos cidadãos ou a violarem os seus direitos naturais.No fundo, a ideia central é que a liberdade é antes de tudo um direito individual, e que, como escreveu o grego Tucídides "a felicidade reside na liberdade, e a liberdade na coragem". Incluir a ideia de "direito à felicidade" resultava por isso quase natural para quem colocava a liberdade, com todas as suas consequências, no centro dos direitos fundamentais.
Esta ideia não agradava muito ao mundo comunista onde, em nome da protecção, ou da promoção, dos direitos económicos e sociais, se negavam aos indivíduos toda e qualquer liberdade de escolher o seu caminho, a "sua felicidade".
Daí que o segundo tipo de direitos, os económicos e sociais, tenham sido incluídos na Declaração Universal, por vezes chegando próximo do absurdo (o artigo 24.º, por exemplo, estabelece que todos têm direito a férias pagas, o que faz sentido para todos os trabalhadores, para os trabalhadores por conta de outrem, não para todos os restantes seres humanos...).É bom ter presente este enquadramento histórico, pois enquanto os direitos económicos e sociais, por dependerem da pró-actividade dos estados, permitem agendas políticas , os direitos políticos são neutros, pois apenas limitam as regras do jogo e até onde podem os estados e os governos ir no quadro de leis gerais e iguais para todos.
Mesmo considerando que o equilíbrio encontrado entre as democracias ocidentais e as ditaduras comunistas durante a negociação do documento é um equilíbrio razoável e genericamente interiorizado, é importante perceber que nem sempre o consenso é a melhor solução. Ou seja, que para respeitar verdadeiramente a liberdade tem de se assumir a diferença e não de procurar diluí-la.